Cuidados de saúde primários com qualidade | Um investimento rentável

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Desde os anos 90, Portugal, como outros países de elevado rendimento, enfrentou uma crise nos cuidados de saúde primários, pela falta de acesso, desmotivação dos médicos e insatisfação dos utentes (1). Esta questão era premente, considerando os benefícios substanciais que os cuidados de saúde primários poderiam aportar aos sistemas de saúde e à saúde das populações.

De facto, os cuidados de saúde primários ideais, porta de entrada para o sistema de saúde, apresentam várias vantagens. São acessíveis a todos os cidadãos, independentemente da sua condição social e do local onde residem. Por serem menos dispendiosos do que os cuidados hospitalares quanto a equipamentos e recursos humanos, e de organização mais simples, são oferecidos numa larga escala, até nos sítios mais remotos, e por um preço relativamente baixo. O médico de família é o primeiro contacto acessível, e portanto também regular, do utente, tendo uma visão global da sua saúde, dos estilos de vida, das diferentes comorbilidades e das suas consequentes necessidades. Esta posição privilegiada permite-lhe atuar na prevenção primária, maximizando a sua saúde, e na prevenção secundária e terciária, pelo seguimento das doenças crónicas e referenciação para cuidados especializados.

A literatura empírica tem vindo a demonstrar amplamente os benefícios do investimento nos cuidados de saúde primários. O artigo de revisão de Starfield, Shi (2) relata evidência sobre três relações que demonstram, em crescendo, a importância dos cuidados de saúde primários para a saúde das populações. Um primeiro grupo de estudos demonstra que os países ou regiões com mais médicos de clínica geral têm melhores resultados em saúde, inclusive menores taxas de mortalidade por todas as causas e para doenças específicas. Um segundo grupo de estudos indica claramente que quem é seguido regularmente por um médico de clínica geral tem melhor saúde. Por fim, vários autores mediram a relação entre saúde e características dos cuidados de saúde primários, observando uma relação positiva entre saúde e qualidade do atendimento. Destaca-se ainda, ao nível mais macro, uma comparação internacional que indica uma melhor saúde da população nos países onde o sistema de saúde está mais orientado para os cuidados de saúde primários (3).

Apesar da importância da simples existência de cuidados de saúde primários, a literatura indica que a sua mais-valia depende sobretudo da qualidade dos mesmos: acessibilidade do primeiro contacto médico, fonte regular de cuidados centrados na pessoa, serviços alargados, e coordenação de cuidados (4). Uma comparação internacional de 2015 observa que a qualidade de vida dos doentes crónicos é melhor nos países com cuidados de saúde primários mais fortes em termos de capacidade, coordenação e acesso (5).

Assim, as dificuldades dos cuidados de saúde primários, conjugados com o conhecimento dos seus potenciais benefícios, suscitou desde os anos 2000 um maior debate e contágio de ideias entre países com sistemas de saúde relativamente diferentes, levando ao consenso sobre as medidas a adotar nesta área. Em termos organizacionais, destacou-se nesta discussão o modelo americano do patient-centered medical home (PCMH), com equipas multidisciplinares capazes de fornecer cuidados compreensivos (desde a prevenção ao tratamento da doenças crónicas), em parceria com os doentes e as suas famílias, coordenando-se com as diferentes estruturas do sistema de saúde, favorecendo cuidados mais acessíveis, seguros, e de qualidade.

Embora menos ambicioso, o modelo português da Unidade de Saúde Familiar tem várias destas características imbuídas, tais como a multidisciplinariedade, o seguimento regular pelo médico de família, e o foco na melhoria do acesso. A inclusão, neste último modelo, de componentes de capitação e pagamento pelo desempenho incentivam as boas práticas de prevenção e a continuidade dos cuidados, utilizando indicadores tendencialmente relevantes para a saúde pública. Embora os resultados preliminares tenham demostrado ganhos importantes nos indicadores sujeitos a incentivos (6), importará no futuro reforçar o acesso e o carácter compreensivo dos cuidados, para que os cuidados de saúde primários portugueses se aproximem dos melhores exemplos internacionais. Para tal, importa não só que que todos os cidadãos tenham acesso a um médico de famíla, mas também a outros serviços, com particular destaque para a saúde oral, a saúde mental e os exames complementares de diagnóstico. São estes investimentos – rentáveis – na qualidade e no acesso que permitirão aos cuidados de saúde primários em Portugal dar o seu pleno contributo para a saúde da população e a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.

Julian Perelman
Escola Nacional de Saúde Pública (Universidade NOVA de Lisboa)

  1. Bodenheimer T. Primary care—will it survive? NEJM. 2006;355(9):861-4.
  2. Starfield B, Shi L, Macinko J. Contribution of primary care to health systems and health. Milbank Q. 2005;83(3):457-502.
  3. Macinko J, Starfield B, Shi L. The contribution of primary care systems to health outcomes within Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) countries, 1970–1998. Health Services Research. 2003;38(3):831-65.
  4. Starfield B. Politics, primary healthcare and health: was Virchow right? J Epidemiol Community Health. 2011;65(8):653-5.
  5. Hansen J, Groenewegen PP, Boerma WG, Kringos DS. Living in a country with a strong primary care system is beneficial to people with chronic conditions. Health Affair. 2015;34(9):1531-7.
  6. Perelman J, Lourenço A, Russo G, Miraldo M. Pagamento pelo desempenho nos cuidados de saúde primários: experiências cruzadas. Coimbra: Almedina; 2016.

 

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